O realismo e sua atualidade: 25 anos de crítica literária dialética na UnB
- Alexandre Pilati
- há 5 dias
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Apresentação
A Revista Cerrados celebra, neste número 68, os 25 anos de reflexões críticas ancoradas na tradição dialética, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília. A linha de pesquisa Crítica Literária Dialética é engendrada no Grupo de Pesquisa Literatura e Modernidade Periférica, fundado em 1999 pelo professor Hermengildo Bastos, uma das grandes referências críticas e teóricas dos docentes que compõem a linha de pesquisa. O Grupo e a linha têm contribuído, ao longo desses anos, para a formação de estudantes em nível de mestrado e doutorado, para o desenvolvimento da pesquisa sobre literatura e para a promoção de projetos, cursos, eventos de extensão.
Também deve-se destacar a atuação da linha de pesquisa Crítica Literária Dialética na produção e na publicação de estudos críticos vinculados a essa tradição. É o caso deste número da Cerrados, reunindo 27 artigos que atravessam fronteiras geográficas, temporais e disciplinares. Com isso, testemunha-se a vitalidade e a atualidade de um método crítico comprometido com a análise das relações entre forma estética, história e sociedade.
Este dossiê foi produzido no contexto de transição entre duas edições do Colóquio Internacional O Realismo e sua Atualidade. Na nona edição, ocorrida em 2024, o tema central trabalhado foi exatamente o mesmo deste que é proposto à edição da Cerrados: “25 anos de crítica literária dialética na UnB”. Alguns participantes do colóquio integram este volume com contribuições derivadas ou não dos textos apresentados durante o evento. O tema da décima edição, que ocorrerá em novembro de 2025, é “A crítica literária dialética, de Candido a Lukács”. De alguma forma, os artigos aqui reunidos antecipam e explicitam a validade contemporânea do debate que tem como referência esses nomes e também os de Schwarz, Benjamin, Adorno, Bastos, entre outros.
A organicidade do conjunto aqui apresentado se dá, salvo engano, pelo manejo do conceito de realismo. Nos termos da tradição da crítica literária dialética, o realismo não se confunde com um período literário e de modo algum com a transposição mecânica, pormenorizada e estanque da imediatez da vida social para as estruturas do texto literário, posto que o realismo artístico é, antes, a negação dessa imediaticidade pela criação de uma outra imediatez: a da obra literária, um particular no qual, pensando-se, por exemplo no caso da poesia, um sujeito enunciador singular se situa dialeticamente em relação ao mundo objetivo e busca exprimir sua subjetividade de modo a tornar legíveis algumas forças motrizes universais da História.
De forma mais ou menos evidente, o pressuposto realista encontra-se nos textos a seguir apresentados. Realismo, como se verá, é um reflexo estético da vida, que, por ser artístico, não repete simples e “fotograficamente” a realidade, mas conforma a superfície imediata da vida às necessidades e interesses humanos, criando um mundo próprio onde o homem pode se reconhecer como humano, uma vez que, na obra de arte, está unido e concentrado aquilo que na vida cotidiana, especialmente na sociedade fetichizada, se apresenta desarticulado e dissolvido: a relação entre sujeito e objeto; entre essência e aparência; entre individual e genérico.
Considerando tudo isso, do conjunto dos artigos, podem-se destacar ao menos três grandes eixos temáticos, que são interpenetráveis e intercambiáveis: 1) Diálogos com a tradição crítica dialética; 2) Análise das Formas literárias como expressão da contradição social e 3) Realismo e processo social na periferia global, 4) Expansões intermidiáticas e transnacionais e 5) Desafios pedagógicos e políticos.
Vários trabalhos revisitam fundamentos teóricos e suas aplicações contemporâneas. Danielle Corpas abre o volume com a discussão sobre os desafios atuais da crítica dialética diante de tendências teóricas hegemônicas, enquanto estudos sobre Adorno (Nepomuceno), Kracauer e Lukács (Chicote; Koval) exploram as mediações entre teoria, prática e realidade política. A releitura da obra de Antonio Candido (Lucena; Gonçalves) evidencia sua centralidade para a compreensão da formação literária brasileira e argentina. O método crítico de Candido, inclusive, aparece de modo transversal aos ensaios, aparecendo ora mais explicitamente ora mais subliminarmente, determinando a posição do crítico e a forma do olhar estético sobre a forma literária.
A sátira, a ironia e a alegoria emergem como ferramentas críticas privilegiadas. Artigos sobre Machado de Assis (Correa; Sottili; Coelho), Eça de Queirós (Guerra) e Alberto Caeiro (Leite) demonstram como esses recursos formalizam as tensões da modernização periférica. A análise de Rainha Lira, de Roberto Schwarz (Fogal), revela a contradição como princípio compositivo para representar a periferia capitalista.
A representação das desigualdades e a voz dos marginalizados percorrem estudos sobre José Falero (Bernardes & Ferreira), Bernardo Élis (Baron & Germano), Maria Valéria Rezende (Silva & Franco) e Conceição Evaristo (Alves). Destaca-se a investigação de estratégias estéticas — do realismo afetivo à literatura de testemunho — para figurar experiências subalternas e projetos emancipatórios.
O dossiê amplia o escopo da crítica dialética para a experiência cancional brasileira (Machado; Sousa; Nunes), a pintura modernista (Ferreira) e o teatro (Castano) são investigados nas formas de mediação da realidade social que apresentam como fatos especificamente estéticos. Estudos sobre Portugal (Bergamo & Canedo) e Argentina (Vale; Rosa) reforçam as possibilidades do viés comparativo através da análise dialética do fenômeno literário.
O volume se encerra com a contribuição de Fleury et al, calcadas nos postulados de Antonio Candido em “O direito à literatura”. Em seu texto, as autoras enfatizam o papel da literatura na educação básica, através de um interessante relato de experiência que articula leitura literária e consciência crítica diante da iminência da barbárie social.
“O direito à literatura”, de Candido, é um ponto de fuga de grande parte desses estudos, o que lastreia a observação concreta de um legado em movimento. Os textos coligidos doravante, assim, não apenas homenageiam um quarto de século de reflexão dialética na UnB, mas também contribuem para a sua contínua reinvenção. Ao enfrentar desde clássicos machadianos até narrativas contemporâneas do Sul global e outras formas de arte, os autores reafirmam a potência de uma crítica que: a) recusa a fragmentação e insiste na totalidade social como chave interpretativa; b) investiga como as formas artísticas encarnam contradições históricas; c) assume o compromisso ético de evidenciar os problemas da sociedade, sem abrir mão do rigor estético.
Este dossiê confirma, portanto, que a crítica dialética segue indispensável para desvendar os "restos do império" (Bergamo & Canedo) e as travas no horizonte polêmico (Corpas) de nosso tempo. Seu esplendor reside em "meter tudo lá dentro. A vida toda", como sugere um dos autores abordados, Lobo Antunes.
Alexandre Pilati (UnB – POSLIT – Brasil)
Deane Maria Fonseca de Castro e Costa (UnB – TEL – Brasil)
Martín Ignácio Koval (UNAJ – Argentina)
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