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Fazia frio em São Paulo (excerto)

  • Foto do escritor: Alexandre Pilati
    Alexandre Pilati
  • 6 de mai.
  • 2 min de leitura

Abaixo reproduzimos trecho de texto de Antonio Candido sobre Carlos Drummond de Andrade.


Em 1934 Carlos Drummond de Andrade saiu daquela Belo Horizonte tranquila, traçada com régua meticulosa mas cheia de encanto, que ainda vive em romances de Eduardo Frieiro e Cyro dos Anjos, para ser chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. Veio o golpe de Estado em novembro de 1937 e ele continuou na mesma função, abrindo um capítulo curioso da relação entre o cargo que um escritor exerce e a sua liberdade de pensar e escrever. Ninguém ignorava que Drummond era então simpatizante das posições comunistas, que o Estado Novo proscrevia e perseguia, pois um dos pretextos para a sua instalação foi, justamente, o alegado perigo que elas apresentariam para a Nação, a Ordem, a Família e outras maiúsculas. Assim, o chefe de gabinete do ministro da Educação viveu, no exercício das funções, a fase mais ativa da sua militância intelectual de poeta comprometido com ideais de esquerda.


[...]


Em 1943 escrevi a Drummond sem conhecê-lo, pedindo descaradamente colaboração para uma revista de jovens de que eu fazia parte. Ele respondeu com extraordinária cortesia, mandando palavras de estímulo e alguns poemas admiráveis, que depois apareceriam quase todos em Rosa do povo. Escolhemos três, que só foram sair dali a um ano, porque a revista passou por longo eclipse. Mas antes de acabar para sempre, no fim de 1944, pôde publicar em primeira mão um dos poemas mais belos e importantes da literatura brasileira contemporânea: “Procura da poesia”.


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De permeio, no dia 9 de novembro de 1943, os estudantes de direito fizeram contra a ditadura da época uma passeata de protesto, que foi dissolvida a bala pela polícia, com morte de um rapaz, ferimento de vários outros e dezenas de prisões. Como a censura à imprensa e ao rádio era absoluta, resolvi mandar a amigos do Rio uma informação sobre os acontecimentos, a fim de desmascarar ao menos para algumas pessoas responsáveis as deformações previsíveis da versão oficial. Foi o que fiz com a ajuda de uma colega no fim daquela tarde, contando inclusive que o dia estava cinzento, frio, com vento e uma chuvinha ocasional. Tiramos várias cópias a máquina, em papel f ino, e mandamos à gente com a qual estávamos ligados, remetendo também uma para Drummond. Pensando na coisa, vejo agora que nunca soube se o relato chegou aos destinatários; mas tempos depois recebi de Drummond a cópia de um poema novo, “O medo”, dedicado a mim e com epígrafe tirada de um artigo meu daquele ano — o que me encheu de um desvanecimento que se pode imaginar. Ora, lá aparecem uns versos que sempre supus alusivos ao relato dos acontecimentos daquela tarde de repressão violenta, embora nunca tenha me certificado a respeito com o autor:


Refugiamo-nos no amor,

este célebre sentimento,

e o amor faltou: chovia,

ventava, fazia frio em S. Paulo.


Fazia frio em S. Paulo… Nevava.


CANDIDO, Antonio. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004 (3ª ed.)

 
 
 

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